Há milhões de anos, alterações das condições de vida favoreceram o surgimento da postura ereta e do bipedismo nos nossos antepassados mais remotos. O estreitamento da bacia daí decorrente obrigou a que as fêmeas parissem crias muito pequenas e imaturas, incapazes de se socorrerem a elas próprias. A sua extrema fragilidade tornou-as dependentes de cuidados externos e a tal ponto que, sem eles, morreriam antes de terem alcançado a capacidade de se reproduzir.
A situação de vulnerabilidade original do bebé do homem revelou-se incrivelmente vantajosa: a imaturidade neuro-cerebral presente à nascença é um fator de plasticidade que permite o surgir, sob a influência das estimulações sociais e ambientais, de uma infinidade de conexões cerebrais individualizadas. Assim, se a prematuridade do recém-nascido parece ter privado o ser humano de esquemas comportamentais instintivos bem constituídos, dotou-o de uma capacidade cerebral, até então nunca vista, para poder aprender a partir das suas próprias experiências relacionais.
Por outro lado, o desamparo original favoreceu a emergência e a seleção, no seio da espécie, de comportamentos de ajuda e de assistência aos mais desprotegidos. Podemos ver aí a origem racional – porque essencial à sobrevivência da espécie – de um núcleo transcultural de ética, isto é, de práticas de cooperação, de troca e de reciprocidade, culminando no desenvolvimento daquilo a que comummente chamamos solidariedade.
Talvez possamos pensar que hoje, mergulhados nesta pandemia, o que nos pode salvar é essencialmente o mesmo que nos permitiu aceder à condição humana: a capacidade de aprender a partir da experiência e de fazer conjeturas sobre o futuro e a capacidade de empatizar e de cuidar dos outros.